NOITE EM PARIS
Fazia um friozinho e chuviscava. Ele
parara em frente ao Eléphant Blanc.
Esperar. Logo estiará. Eram, talvez, duas horas, ou menos. Outras pessoas ali
se encontravam. Esperavam, silenciosas, a chuva passar. Um homem baixo, de
careca luzidia, de roupas modestas, parou em sua frente e de costas, coçando
seus perigalhos, comentou sobre o tempo. Eterno tema das conversas dos que nada
têm a dizer. Tempo, Tempo. Eró, Eró. Tempo, Tempo. Não me comas, não me devores, meu pai. Eu
quero viver. “Oh quero viver, beber
perfumes na flor silvestre que embalsama os ares”. Eu quero a eternidade. Mecanicamente respondera
àquele homem, convicto de que conversas passageiras não eram propícias para se
iniciar uma amizade e isto era o que lhe interessava, pois sabia das
dificuldades em se fazer amigos na França, e mais ainda, o quanto era difícil
conservá-los. Como ser amigo de um clochard?
De uma pessoa que não tinha morada e não se sabia onde procurá-la nas
dificuldades? Não. Não era um mendicante. Flanava, apenas, flanava. E se fosse,
iria precisar de um cloche? Si. No.
Não lhe interessavam suas porandubas, nem pabulices, mas batera um papo. Era
difícil encontrar alguém para papear. Sua vida transcorria em monólogos. Sem
sons. Para que abrir a boca? Não havia ouvidos. Aquele homem percebera o
estrangeiro. Talvez, também ele, um meteco em sua terra. Não. Não era um árabe.
Mourisco das tabas tupis, alóbrogo desdentado. Il n´etait pas un
pied-noir. Non, il n´etait pas un mexicain, non plus. Il s´agit d´un brésilien.
Le Brésil. Le carnaval de
Rio. Disse ser do sul e
talvez entendesse um pouco de português porque sabia algumas palavras do
provençal, la langue d´oc. Orgulho
nos olhos ridentes. Alguma semelhança entre o português e o provençal? Existe
ainda, falantes desta língua? Dela sabia apenas que tal qual o francês o u se
pronuncia abrindo-se a boca para dizer ‘u’ e ao contrário dizer ‘i’, saindo um
som semelhante ao ‘ü’ alemão. Acabava de aprender que bouche se diz boca como em português, une boca; Que nuit se
escreve nuet, noite, e se pronuncia nué; dia não é jour mas jorn e se
pronuncia dzur, pois o j e g se
pronunciam dz; Ch se diz ts; Paraxítonas las
palabras finitas em un, a, e, o, as, es, os. Saberá que Frederico Mistral,
escrevendo em provençau, tornou respeitada a língua occitana. Dias virão em que
lerá o Miréio: "Cante uno chato de
Prouvènço./Dins lis amour de sa jouvènço". "Canto uma jovem da
Provença. E seu amor de juventude".
E lerá um dia a súplica dirigida ao rei René em 1474: Très soveyran et tres haut prince, A la vostra sacrada real majestat,
humilment et devota si expausa..."
Uma rajada de
vento e água. O velho recuou tocando-lhe. No sexo. Entendeu tudo. Não era isto
que estava procurando. Tinha estado em alguns bares, mas não fora posto em
almoeda. Não estava em almunada. D´Alliance
Française, no Boulevard Raspail,
onde estudava e lavava pratos, fora ao Trait-d´Union,
na rua de Rennes. Sorveu o primeiro
trago. Traçar destino para a noite. Daniel, coxo, cochon
não, dançava a bandeja em suas mãos, gritando comandas, pedindo contas, agradecendo gorjetas. Estivera na Buate Grise. Ouvir
cantar Pernambuco. Passara n´A Feijoada, Quai
de l´Hotel de Ville, onde fora mirmidão e escansão, por vezes. Dar um
abraço em Normando, rir das piadas de Claude e das reclamações de Madame Faure,
implicando com ele, Claude. Pardon madame,
pardon, dizia o garçon saído dos Halles, amantapaixonado pela bela. Cantar a bossa nova que Normando
lhe ensinara a tocar, nas folgas, das segundas, n´A feijoada. Ensaiara cantar: "Guarda a rosa que te dei, esquece
os males que te fiz. Timidez?. O pianista, da Martinica negro, reclamava
sempre. Fora de ritmo. Falta de ritmo é timidez, ou um problema de respiração? Não seria justamente
a música capaz de curar a timidez? Bela voz,
ritmo atropelado. Tinha a compreensão e o carinho de Pernambuco. Bebera, bebera
e bebera. Não lhe olhavam as loiras nem as morenas. Em vão. Tímido para a
abordagem. Sozinho mais difícil a conquista. Não era um pédé. Não. Ele não dissera isto. Queria apenas sucer sa bite. Não. Aqui na rua, descaradamente assim? Qu´il n´y avait personne. Tous sont rentrés. L´Elephant Blanc fazia congé, nesta noite. Seus fregueses foram beber em outra
freguesia o grogue reconfortador. Não, definitivamente, não. Iria voltar a seu
quarto. Seu runcó. Subiria os sete vãos de escada do 16 rue d´Assas. Dormindo estaria Madame Zurflux e seu fiel kiki.
Dormindo estaria Mademoiselle Zurflux. E Concepción, a solícita ménagère. La concierge botaria os olhos
para ver quem estava entrando. Nunca dormem as concierges. Poria um disco na vitrola. Aquela que lhe presenteara a
namorada, dedicada esposa do italiano. Lembraria o dia em que a conhecera ao
comprar-lhe amendoim na avenida Saint
Michel. Est-ce-que vous
jouez de la guitarre? Por acaso tocava, sim, violão. Claro,
dar-lhe-ia aulas de violão. Talvez não tocasse tão bem, não fosse capaz de
tocar-lhe o Concerto de Aranjuez. Ou igualar Turíbio Santos num Estudo de
Villa-Lobos. São Turibio, não o de Mongrovejo, apóstolo do Peru. O do violão,
admirado e louvado em todo mundo. E que dizer de Baden Powell, o mágico do pinho?
Baianinho, bota aí uma dose daquelas. Preparar a garganta pr´aquela feijoada
caprichada. Saberia, planger as primeiras notas. Só as primeiras notas. Um ré menor, um lá
menor, um mi menor. Os tons menores são mais românticos e mais tristes. Os tons
dos apaixonados. A música de quem tem dor de cotovelo.
Sim,
subiria ao seu quarto. A camarinha como dizia Nanã. Lembraria o verde mar
bravio de sua terra, azulverdelaranja, ai, sonho imberbe do noviço, recém saído
do Vieira, colégio dos jesuítas, revindo de Itambé, ninho vocacionista, onde
fora jogado pela Ordo Fratrum minorum Cappucinorum da Província da Piedade da Bahia.
Volto para ti doce amour de ma jouvènço.
Oxalá, esteja eu vivo após esta travessia, Inch-alah.
Lembraria teus cabelos cor de oiro, o sorriso qu´eu queria conquistar à ponta
de espada. Ai. Lembraria o dia do não no Duque,
na garganta preso o choro, mãos
frias e corpo em transe, mundo em giro e voz caindo, vertigem, surdez e raiva, amor ferido e
orgulho, caminhando rua afora, rua aqui rua acolá, aula de latim
perdida, ruas estreitas e negras faces, na multidão escassos passos, cores
pardas, cinzas, negras. Nem voz, nem som, nem sinos de igreja. Mar revolto,
águas de março, Ab7. Teu fantasma. Pisa
m´ia sombra, toma meu pulso, meu coração assalta. Mar, tão longe e tão
presente, ai, doce mar, quem te acalma, doce mar de minha terra natal, mãe e
pai de todos nós, aplaca tua ira, águas de março, Bb7/E. Ai, primeiro grito de amor, vence as barreiras
do som, diz a ela que de longe, pode morrer a voz, pero não o sentimento, que
veio sem ser pedido, mas aqui vai transmitido, como cantigas de amigo de um
trovador solitário. Conta-lhe d´estranha terra,
andanças, desencantos e encantamento, fome, fadiga e frio. Das noites de
bar em bar, procurando sem achar, um cálice de vinho amigo. Conta-lhe esta
odisséia, como Enéias contou a Dido. Ai marvada não me devores. Posso contar tua história.
No
seu quarto, tomaria um copo de Porto. Esquentar o frio. Deitar-se-ia ouvindo
tranquilamente Mozart. O Divertimento em ré maior, K334, do poeta que em l779,
na velha Salisburgo, num rasgo de inspiração, compôs para o deleite da
posteridade. Era cedo. Ainda não passara o leiteiro. Dormiria um pouco e
voltaria à rua. Buscar sua cota de leite na mercearia. Não. Não era um clope.
Não era um ladrão. Mercúrio, Hermes Trimegisto, sabe disso, mas há de protegê-lo. Fazia sua redistribuição da
riqueza. Não como Robin Hood, porque não havia Ricardo, nem coração de leão,
nem selva para salvá-lo, e sim para perdê-lo de miríades corações de pedra. Os
franceses entregam o leite nas padarias e mercearias na madrugada. Como nas
residências, deixavam os pacotes empilhados em frente à porta. Pegava sua parte
todas as noites. Era preciso comer. E comer exige luta. A arma do fraco é o
ardil, senão morre. Toda arma é lídima, se prá salvar a vida. Deixar passar
aquele casal de namorados, levém um clochard,
atrás mais outro, mais outros, como cáfila, andam. Em seu quarto lhe esperavam
a baguete e a manteiga, esta, surripiada no marché
à cotê. Não tremer como lhe dizia o amigo Luiz. Se tremer o francês vê,
como quase viu no dia em que roubaram chocolate no mercado. Ou no dia em que te
pegaram roubando um livro de Pierre George. A mão do segurança sobre teu ombro.
Não. Não tinha esquecido nada. A prova do furto. O livro sob o capote. O
caminho para delegacia. O caminho para seu quarto. Os gritos dos policiais.
Inda bem que não viram a navalha, arma da capoeira, camuflada n´algibeira. O
aljube seria certo, oh meu Deus, Deus
meu, me valha. Polícia, igual em todo mundo. Como bem disse Maradona, (não se
leia marafona), imbecis há em toda
parte. Não mataram Sacco e Vanzetti? A deportação, que medo. A Volta,
vergonha, vencido. Por-lhe-iam num barco de terceira. A viagem, a náusea
e a chegada. O vômito voando sobre si, caindo no mar profundo, pede vênia velha
senhora. Me desculpe, lhe desculpa. Vomitar também vomita sobre o azulmarchando canal. Dom Quixote não mancha,
de la Mancha. Que perguntas que tu lhe
fazes? Que perguntas tu lhe fazes, Paris? Luzes suas, saudade. O bulício de seus
bares. Aprendizado sofrido. Fumo,
vinho e cerveja. Ah, a cerveja.
Lembranças lá d´ Aroeira. Chico de Anjo,
do Paraná, chegando. Desce mais uma, João. Tome-lhe cerveja quente. Geladeira,
coisa rara no sertão sem energia. Gritam, assustadas, mulheres desacostumadas.
Virge, virge, bicha marguenta, até mijo parece, crendeuspadre. Un demi.
Un panaché. Dizem os franceses
saboreando-a sem parar. As discussões. Cinema, teatro e literatura.
E política e política e política. Daria tempo de avisar a Chantal?
Dar(get)-lhe-ia o violão, o berimbau. Um
regalo. Devolveria a radiola a Louise. Que brigasse o italiano bigodudo
quarantene. De bigode entendia desde os tempos do Vieira. Bigodinho, professor
de matemática, não assustava ninguém. Só padre Hugo, com suas equações,
infligia terror à turma apavorada. A máquina de escrever, deixaria para
Novelli, se Alberto Sergio não a tivesse comprado. Que deixasse os pincéis por
um momento. Escrever um poema. Os livros de política para o Ortega. Fazer a
revolução na sua Nicarágua. Não esquecer. Poesia e teatro para David,
neozelandês que não é maori, galego de zói azul, despido de tatuagens.
Perdoá-lhe-ia por não lhe ter apresentado a petite
allemande? Quanto infantil fora ele, quando juntos comeram moules, em Fontainebleau foram parar,
ainda moles do vinho, quando simplesmente poderia, parar na cama com ela. La petite allemande. De vero não sabia, que a ela se
referia David. Perdoá-lhe-ia por isso? Também ele nada fizera. Ficou na
garganta o desejo. Dupla timidez ou tripla. Nem ele, nem ela, nem eu. Tamáriki,
āe, tamáriki. Crianças, apenas crianças, soa o maori da Polinésia. De
cinema, os livros para Iushiro. O zapon agradece. Arigatô. Saudades de Ikuko na
libertária Amsterdão, das tulipas, das papoulas, do panteísta Espinosa. Quem te
disse que não te quero hana flor d´Oriente? Tu, meu hanami querido. Sinto não
te ter tido em meus braços, escondida na tua timidez. O tempo, comedor de gente,
passa e com mil línguas, qual medusa,
nos arrasta, garganta sua profunda, em caminho sem saída, sem volta, sem
retorno. Viver é agora, dizia sem convencer nem a si mesmo. Quando iria rever
amigos deixados lá? Seu berimbau? Talvez o único existente em toda Paris.
Quanto deve a seu berimbau. O toque n´A feijoada de Madame Faure e o toque em
Brigitte. Brigitte Bardot, Bardot. Brigitte beijou, beijou. Lá dentro do cinema
todo mundo se afobou. Seus passos, sua dança e sua amizade. Ensina-me dançar o
samba, ouvi de sua voz. Je veux
samba, Je veux samba, oui,oui,oui,oui,oui. Ai. Brigitte a bela marvada que
despedaçava corações em todo o mundo.
Bastava ver uma foto sua, um filme onde as linhas ondulantes se
mostrassem mais sinuosas qual um rio preguiçoso ondeando no vale sem
fim. Vence a fera a fera vence. O verbo cortado na garganta. A bela
encanta. O encanto do caminho da serpente que se não desencanta, sob o olhar e
giros do dervixe. Olhos grudados na sua boca entreaberta para o mundo. Cunhã
maira, feiticeira d´além mar. Brígida. Ele não sabia que um dia ela iria
lançar seus dardos contra imigrantes, negros, mestiços e mulçumanos.
Que seu furor pela defesa dos animais era um disfarce para esconder sua
xenofobia e seu desprezo pelo ser humano. Que um dia ela iria se preocupar
mais pela sorte dos cachorros no Egito do que pela morte de pessoas na
Palestina. Lembrou-se de seu berimbau, seu gunga. Gunga Din não. Seu gunga, o de biriba, não o
traírindiano do imperialista
Kipling. Como o amava, e as cantigas ensinadas
por seu mestre Canjiquinha, invencível no toque do berimbau. D´outro mestre,
Waldemar. calça branca, quadriculada
camisa, no pescoço, vermelenço, en su
cabeza, baêta. Esse Gunga é meu, eu
não dou a ninguém. Esse gunga é meu, foi meu Deus que me deu. Esse gunga é meu.
Panha laranja no chão tico-tico. Adeus, adeus, boa viagem, eu vou m´bora, boa
viagem. Seu berimbau, seu toque. Angola rastejando como cobra. São Bento
Grande veloz, Bento Pequeno manhoso, Angolinha astucioso, Samango, olha a
polícia rombora. Seu Berimbau, seu abre-te Sésamo. Se ele estivesse ali.
Delindo esperanças, o delegado interroga. O encanto da serpente. Os gritos dos
policiais. Como pode? Um estudante de direito, ladrão, como pode? As lágrimas,
não, de crocodilo, veramente lhe corriam. Não fora educado para o mundo, o
mundo de aparências, mas d´essências. É muito mal, pois não aprendeu a regra do
jogo, não ganhou régua e compasso. E sofre quando outros riem e gozam, gozam e
riem. Nem imaginaria que um dia iria sofrer por uma formação ferrenhamente
cristã, em que se cultivara o amor, o respeito e a honestidade. Nunca
imaginara ser atacado um dia, justamente
por pessoas desonestas e violentas, que confundiam humanidade, retidão de
espírito com babaquice e covardia. Não era um cobarde. Ê Mundacho Torto,
profundo baixo, gigante, frei capucho Teodoro, ouço-te de Bach Toccata e Fuga,
na Piedade em Ré Menor. Me ensina cantar o Réquiem, de preferência Mozart. Me
ensina contar o tempo, somar, multiplicar, solfejar multiplicar. Ali estava o princípio. Aqui seu primeiro pleito. Puxa da pena
o perdão. Deliu-se o furor policial. Vence a emoção, cala a razão.
Vencer, venceu, mas será sempre assim? Prejudicada, quase, a prova de Geografia
do professsor Pierre George, no Boulevard
Arago. Ah, meu caro mestre, conhecedor do mundo inteiro, se tu
soubesses o quanto é duro nascer no
Nordeste Brasileiro. Inventam os gregos a tragédia que o nordeste vive agora,
com seus beatos e devotos, cangaceiros e jagunços, cantadores e pade Cíço,
secas, fugas e paixões. Sant´Esquilo. São Sófocles. Sant´Eurípedes. Orai por nós que recorremos a vós. Não. Sê
firme. E viverás. Mesmo que nem tenhas tido teu primeiro amor de juventude. Mesmo que te tenhas recolhido
ante a estonteante Brigitte. Mesmo que não tenhas tido em teus braços a bela flor d´Oriente.
Mesmo que te tenhas calado ante a petite
allemande. E os olhos de Chantal? Seu sorriso em noite extrema, na dança do
carnaval. Tu a tivestes, afinal? Mesmo que não. Mesmo que. Ai, marvada sorte
fortuna, por que tu não me escolhes Ganeça, filho de Pavarti, deusa, de Shiva
esposa? Por que tu me deixas nos braços
do malvado Elegbará Set Exu? Por
que tu não me levas, Onipotente
Zeus, pra no Olimpo servir, tal como tu
levastes o troiano Ganimedes? Não. Sê firme. E viverás. Deus Carmo.
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